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coisas que a branquitude me escondeu.

por Luiza de Farias
Foto de Luísa Machado para ilustrar o texto "coisas que a branquitude me escondeu." de Luiza de Farias.

Luiza de Farias nasceu em Recife e desde criança habita o interstício entre a capital pernambucana e sua vizinha, Olinda. É formada em Design pelo Instituto Federal de Pernambuco. Fez Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal de Pernambuco. É pós-graduada em Design e Arquitetura de Espaços Efêmeros. Atualmente, é mestranda em Arquitetura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, abrigada no Laboratório de pesquisa em Arquitetura, Subjetividade e Cultura. Cria e escreve, por ofício e porque precisa. 


resolvi escrever este texto porque esses dias está fazendo um ano que me mudei para o rio de janeiro. um pouco antes de me mudar, fui reencontrar o rio que eu conhecia, o rio da literatura de pessoas que eu gostava. nessa empreitada, eu fui reler a alma encantadora das ruas que é, além do título mais bonito que um livro pode ter, umas das minhas obras literárias pé-de-calçada favoritas. lendo novamente aquela palavras lindas de joão do rio, resolvi dar uma pesquisada maior sobre ele, sobre a vida dele além daquelas histórias que gosto tanto. sabia de antemão que ele era jornalista, cronista, que não era hétero e que o enterro dele foi um do eventos mais badalados do rio no século XX – estima-se que 10% da população carioca foi se despedir dele. só que somente nessa pesquisa do ano passado eu descobri que joão do rio era, também, um homem negro. 

eu fiquei atônita com aquela informação. “como assim joão do rio era negro e eu não sabia?”. parei para pensar durante dois segundos e fazia muito sentido que joão do rio fosse negro, na verdade: era óbvio que ele era negro. a rua que ele via, os acessos que ele tinha à vida ordinária e marginal da cidade e a importância que atribuía a eles só seriam possíveis e sensíveis a uma pessoa negra. mas por que então que nunca me dei conta disso? bem, uma resposta simples é que a branquitude sempre racializa os não-brancos, exceto, quando eles se tornam expoentes em alguma coisa reconhecidamente importante nas culturas brancas. 

neste ponto, eu me lembrei de um outro homem negro que escreveu sobre o rio de janeiro e que também demorei um tempo para descobrir que ele era um homem negro: machado de assis. machado é inegavelmente um dos maiores romancistas brasileiros, de uma sensibilidade e poética extraordinárias e, assim como joão do rio, sua negritude me foi escondida durante um bom tempo. eu conheci machado desde criança, meus pais compravam uma coleção de livros de capa dura e dourada com as obras completas de machado de assis quando ainda se tinha preocupação de vender isso feito folhetim, semanalmente, em banca de jornal. passei a infância e adolescência lendo contos e alguns romances dele. acho que só me dei conta que ele era negro depois da difusão da internet e da facilidade que o google e o cadê? possibilitaram a gente de descobrir uns blogs diferentões. mas assim como com joão do rio, quando descobri sobre machado de assis, me dei conta do óbvio. pois lembro bem do sentimento que tive em uma passagem do memórias póstumas de brás cubas em que o protagonista mata uma borboleta preta e diz: “— Também por que diabo não era ela azul?”. lembro bem que quando li aquilo senti um desconforto horrível que não sabia ainda nominar enquanto racismo, mas que já o sentia em todo meu corpo desde que fui posta no mundo. aquilo só podia ter sido escrito por alguém que sentia o que sentia. alguém como eu, que tem o corpo racializado em cada espaço de branquitude que ousa adentrar. 

digo isso porque meu corpo de mulher negra sempre foi racializado em cada espaço que eu cruzei. eu vou ser sempre e, primeiramente, uma mulher negra. mesmo quando eu não queria ser — antes de entender o racismo e ressignificar tudo isso, e só queria sublimar a existência do corpo. eu vou ser sempre e, primeiramente, uma mulher negra. seja para me reconhecer em um lugar que a sociedade me destinou — e nesse sentido nossa formação de imaginário já vem associada às mulheres negras: a cuidadora, a empregada, a trabalhadora braçal, a explorada e abusada sexualmente, a preterida nos relacionamentos, etc… como também para me marcar enquanto corpo não pertencente a determinado lugar e, nesse sentido, a raça sempre me é atribuída para marcar que eu não sou como os demais, que tem uma questão anterior que precisa ser proferida e pontuada— a estudante negra, a pesquisadora negra, a escritora negra, a intelectual negra, a professora negra, etc… 

só que, no caso de machado e de joão do rio, ao contrário, essa identidade precisava ser escondida. porque eles foram e são grandes demais para serem negros. então, passam a vida inteira com estes predicados — na verdade, mais verbos e nomes próprios do que qualquer outra coisa — sendo omitidos de suas enunciações exemplares. dei uma busca hoje no joão do rio, coloquei em imagens e as fotos que surgiram são todas embranquecidas, como era costume na época — bem, talvez não seja só da época, basta a gente abrir os filtros mais usados do instagram que vemos que a prática de embranqueamento das peles negras ainda é contemporânea. mas a fotografia que me chamou mais atenção foi a terceira ou quarta imagem, dele enquanto membro da academia brasileira de letras. um homem completamente branco. entrei no site e busquei machado de assis, outro homem perfeitamente branco. acho que a academia simboliza estes espaços de branquitude em seu auge racista que diante do brilhantismo de certos homens negros (mulheres não existem ainda, conceição evaristo que o diga), os permitem entrar, desde que dessaturados e lavados de sua negritude.

Imagem de João do Rio, retirada do site da Academia Brasileira de Letras.
Imagem de Machado de Assis, retirada do site da Academia Brasileira de Letras.
Imagem de Machado de Assis, retirada do site da Academia Brasileira de Letras.

Foto de Luísa Machado.

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